terça-feira, agosto 28, 2007

A Terceira Regência



Inspirado na canção When Love Comes To Town - U2
— Senhora Cândido, aqui está o documento. Acerte com a moça do balcão ao lado — disse o tabelião e proprietário do cartório sem, durante todo atendimento, sequer olhar para a mãe da criança que acabara de registrar.
— Que bebê lindo! — elogiou a encarregada pelo recebimento das taxas pagas ao cartório de registros. — Qual o nome dele?
— Amós — respondeu a orgulhosa mãe que trajava um, impecavelmente passado, uniforme de empregada doméstica.
— O nome dele é Amor. Foi o que a senhora me informou, e assim foi registrado — interviu o tabelião, com certa aspereza na voz, desta vez olhando para Maria com ar de repreensão.
— Mas eu falei Amós, e não... — Quando quiser inventar um nome, é melhor que o traga por escrito — interrompeu de forma ríspida o corpulento tabelião, com um forte sotaque que Maria não soube identificar.
— O senhor conhece os nomes Jonas, Isaías, Joel?
— Já registrei muitos deles aqui!
— Pois então, assim como estes, Amós também é o nome de um profeta do antigo testamento, e como o senhor lida com nomes, eu achei que não houvesse a necessidade de trazer um nome bíblico por escrito.
— Eu não sou cristão, senhora. Esta é a minha bíblia — disse o homem colocando a mão sobre um bonito Alcorão de bordas douradas, que ficava próximo ao seu caderno de notas.
— Quanto a trazer por escrito, me perdoe... Esqueci que a senhora é analfabeta — concluiu o tabelião sarcasticamente e, na clara intenção de constranger Maria perante as demais pessoas que aguardavam impacientes naquela sala quente e pouco ventilada, levantou o espesso livro de notas, apontando para a impressão digital da humilde mulher.
— Por favor, corrija o nome de meu filho — pediu Maria, esticando o braço para entregar-lhe a certidão.
— Não há como. A senhora deveria ter pedido ao seu marido que escrevesse o nome da criança — respondeu o homem, também ciente de que Maria era mãe solteira, escárnio para a época. E voltando novamente o olhar para o livro no qual batia impacientemente com a pequena régua que usava para escrever de forma alinhada, gritou: — Próximo!
Maria, com a dificuldade de quem segurava uma criança, abriu sua bolsa e guardou a certidão, na esperança de que um dia pudesse corrigir o erro no nome do filho. Sentindo-se humilhada, retirou-se da sala, mas antes pôde ouvir alguém que aguardava sua vez de ser atendido cochichar: “Não sei porque tanto caso, é só mais um pobre-diabo neste mundo”. Sem olhar para quem dissera aquilo, Maria retirou-se antes que não conseguisse conter as lágrimas que caíram a poucos metros do cartório, onde agachada e encostada a um muro e segurando seu filho entre as pernas e o tronco dobrado, ela fingia procurar algo na bolsa, apenas para permanecer com o rosto voltado para o chão, ocultando seu pranto perante os poucos e indiferentes transeuntes que por ali passavam. Respirou fundo, enxugou as lágrimas, levantou-se e continuou a caminhar, de volta ao trabalho, ainda com a frase “mais um pobre-diabo neste mundo”, ecoando em sua cabeça.


Trinta e dois anos depois...

Amor despertou, e como de costume nas manhãs de sábado, ainda deitado, fez um breve resumo de como